A Copa, Pelé, e o futebol brasileiro
Por Paulo Mordehachvili
Era o final da Copa do Mundo de 2022 quando Galvão Bueno desabafou na Globo. Chamou atenção sobre a performance apenas medíocre da seleção na Copa, do erro elementar de perder, digo deixar empatar, um jogo até então ganho, em um lance fortuito de falta de organização. Falou também da (falta de) atitude do Agenor ao sair para o vestiário sozinho, deixando seus comandados em campo.
Agenor, o Tite, parecia gostar de dizer que se sentia em paz, que se sentiu “mais Agenor e menos Tite,” nesta Copa. Reiterou este sentimento após a derrota.
Minha resposta seria “Muricyana”. Em paz? Zen? Tá de brincadeira meu? O meu nome é trabalho, pô! Não existe paz para chegar ao nível máximo. Stress é normal, mais que isso, é necessário!
Ou algo assim.
A Copa é bicho cruel. Equipes gigantes perdem. Craques históricos reunidos em times espetaculares, perdem. Mesmo Fenômeno, Gaúcho, e Rivaldo, Cafu e Roberto Carlos perderam. Sócrates, Zico, Junior, Cerezo, Leandro e Éder, perderam. Cruyff e o seu carrossel, perderam. Qualquer competição no mais alto nível é intensa demais em qualquer esporte, em qualquer esfera, para objetivar-se “paz”.
Tite parece ter transmitido essa “paz” para os jogadores. Todos satisfeitos, em paz? Com toda essa paz, será que Tite elevou o nível de cobrança sobre todos, e notadamente Neymar? Ou Neymar não precisa ser cobrado?
A seleção jogaria melhor e venceria, sem Neymar? Neymar sempre optou, ou foi cooptado, por ser produto mais que jogador. Entretanto, campeões raramente são mais produtos que jogadores. Líderes incontestes são sempre de carne e osso, mesmo com aura de super herói. O esporte é coletivo e liderar equipes é dar exemplo. Tite e Neymar destoaram neste quesito básico. Tite em paz, inquestionável – indo para o vestiário solitário após a derrota. Neymar, com tanto talento de sobra, porém mais produto que jogador.
Galvão foi cirúrgico sobre o momento. Mas na sua posição de autoridade, lhe faltou crítica. Não a Tite, não a Neymar, mas ao estado do futebol brasileiro.
Logo o futebol brasileiro, que sempre foi o seu maior produto, e da sua organização, a guardiã do produto. Vimos, junto com a Globo, o nosso futebol perder em estatura, perder em status, e perder mercado. Parece que erramos a mão em vários aspectos. A maior paixão do Haiti, da África e da Asia, definhando em qualidade, até deixar de ser…
Meu problema com Galvão é, digamos, histórico. Para alguém que vivenciou craques consagrados, melhores do mundo na seleção, e que teve o privilégio de observar de uma espécie de trono décadas de desfiles em campo, me deixa pasmo a falta da crítica elementar, fundamental, ao futebol brasileiro no seu todo, e não somente no seu momento.
Me parece até que Tite e Neymar, e Galvão Bueno, compartilham da mesma empáfia que permeia todo o futebol brasileiro. Vejamos.
A empáfia, ou arrogância, de Tite, parece estar relacionada a uma limitação, digamos, intelectual. Melhor, a falta de curiosidade intelectual, que em última análise é a mãe do questionamento.
Tite nunca quis ou soube questionar se a tática certeira nas Américas, com seu futebol tão pobre e limitado, seria coerente no mais alto nível. Sempre se mostrou muito satisfeito com seus processos, aliás, chegou a encher a boca sobre os seus processos – mas sem testá-los de fato. Sua arrogância pessoal foi construída e trajada de vitórias. Mas seriam essas as vitórias que o colocariam no panteão dos técnicos mundiais? Seriam essas as vitórias definidoras de processos no futebol mundial? Nem de perto. Suas vitórias foram em nível inferior. Ele poderia reconhecer isso e, quem sabe, ter menos certezas. E menos paz.
A empáfia de Tite tem correlação clara com o futebol brasileiro. O outrora poderoso e temido futebol brasileiro, seus clubes e seleções, hoje não passam de participantes, coadjuvantes do futebol mundial. As 5 estrelas que ainda merecidamente brilham nos nossos céus também cegam os olhos de quem vive e comanda o futebol brasileiro.
Aliás, que comando?
Falar sobre a Copa de 2022 parece tão pouco perante a decadência irremediável do futebol brasileiro, que nem mesmo o 7-1 nos fez realizar… que pauso para uma ponderação mais ampla.
A Globo e o futebol brasileiro cresceram com todos os privilégios possíveis. O Brasil conta com o maior mercado de consumo de futebol em um único país – consumo em volume financeiro, em dólar. Que outro país do mundo possui 50 milhões de consumidores de nível europeu, ávidos por seus clubes, pelo esporte, e pela seleção?
Que outro país tem o nível de rivalidade interclubes que o Brasil tem, com seus cerca de 15 campeões nacionais nos últimos 50 anos?
Que outro país tem tamanho celeiro de talentos no esporte? Que outro país tem tamanho monopólio do futebol, dentre todos os esportes?
Que outro país já teve um campeonato nacional que rivalizaria, em qualidade e talento de jogadores, com a Champions de hoje, com praticamente todos os jogadores locais, como os campeonatos brasileiros das décadas de 60, 70 e até 80 – o melhor do mundo na época?
E que outro país consegue hoje ter uma liga nacional, com todos os atributos acima, que não consta entre as 10 melhores do mundo? O Brasil hoje perde, ou vende precocemente, jogadores de equipes da Série A para times da Bulgária, China, Ucrânia, Polônia, Turquia, Suíça, e tantos outros campeonatos de baixa relevância.
A Globo co-liderou o desenvolvimento do futebol brasileiro, junto com a CBF e nossas federações durante décadas. Melhor dizer: o subdesenvolvimento do futebol brasileiro.
O futebol brasileiro vive uma seca de talento gravíssima desde 2006, última Copa que tivemos qualquer melhor do mundo em campo no nosso time (exceção feita a Kaká em 2010).
Certamente não foi a última Copa que demonstrou o nosso baixíssimo padrão de direção técnica. Podemos inclusive dizer que o Brasil é penta apesar dos técnicos brasileiros. Enquanto talento transbordava, ganhamos algumas e perdemos outras. Deveríamos ter ganho, ou teríamos os melhores plantéis, também nas copas de 2006, 1982, e 1978.
Mas e agora, que o talento nos falta? Fazer um time aparentemente sólido como o de 2022 é o que nos resta?
A geração já “europeia” de 2002 e 2006 ainda conseguia esconder a parca realidade do futebol jogado nos campos do Brasil. Nosso campeonato nacional, outrora a melhor liga do mundo em termos de talento, rivalidade e tradição, é hoje um subterfúgio do talento de outrora, dos moleques e dos aposentados. Nossos melhores jogadores partem muito cedo, e retornam tarde demais. Mas pior que isso, nossos melhores jogadores não são mais os melhores do mundo.
Houve muito esforço para destruir o futebol jogado no Brasil, enquanto ligas europeias outrora pífias se profissionalizavam. A liga inglesa acordou de um pesadelo dos hooligans para se reestruturar totalmente há 30-40 anos atrás, para hoje despontar como a melhor do mundo.
E por aqui, o que houve? Uma tragicomédia de erros, por assim dizer.
Por um lado, a tentativa de “espanholização” do futebol brasileiro saiu pela culatra. Ao beneficiar poucos com verbas de TV desproporcionais, geraram-se distorções definitivas de poderio financeiro facilitado (mesmo que em alguns poucos com alguma competência para aproveitar a bonança).
A direção do futebol brasileiro conseguiu abandonar características poderosas que talvez somente o futebol brasileiro possui: rivalidades históricas que geraram mais 15 ganhadores de campeonato brasileiro, torcidas apaixonadas por clubes centenários e com histórias grandiosas, e o maior celeiro de talento do mundo. Ao mesmo tempo que víamos nosso talento partir e definhar, mantivemos o padrão e também deixamos ligas estaduais e Federações grotescas, cujo maior destaque sem dúvida é a carioca, continuarem a existir, e atrapalhar o futebol brasileiro. O Campeonato Carioca, que na verdade é do estado do Rio de Janeiro, nem premiação tem atualmente! Na década de 70, era possivelmente um dos 5 melhores campeonatos do mundo.
O futebol brasileiro tem dono. Trata-se de empresa familiar, não profissionalizada, questionável para dizer o mínimo: a Confederação Brasileira de Futebol, subordinada à Federação Internacional, à FIFA, também familiar e com parentesco, no sentido literal da palavra, histórico com a CBF.
Morreu Pelé e, com ele, a aura do futebol brasileiro. Enquanto uns questionam a superioridade inconteste do Rei, principalmente ao apontar que Ele nunca jogou uma Champions, só é necessário lembrar que na sua época a Champions era aqui. Na época de Pelé, era aqui que jogavam 50%, 60% dos maiores jogadores do mundo, contra e com Ele. Com a maior rivalidade do mundo. Com o maior estádio do mundo, que somente um jogador de fora do Rio conseguiu chamar de Seu.
A destruição do futebol brasileiro tem paralelo claro com a empáfia de Tite, a miopia de Galvão e da sua organização, e do talento pródigo de Neymar que nunca conseguiu ser mais que coadjuvante no mais alto nível, e que de certa forma nunca se incomodou, de fato, com isso.
Alguns ainda querem engrandecer o futebol no Brasil de hoje, chamando atenção para seus maiores times – poderosos a nível local. Ora, eles são pífios a nível mundial. O futebol sul-americano não vence uma final de mundial interclubes há quanto tempo? Durante 10 finais, nem um gol marcou. E o que assistimos em campo hoje nos campos do Brasil é essa mescla tosca de crianças talentosos e aposentados jogando no mesmo nível ruim.
Se não conhecêssemos o nosso passado, se não pudéssemos copiar o que fazer no futuro, poderia haver cabimento.
Mas se falta razão para reconhecer a necessidade de uma completa reestruturação do futebol brasileiro, falta também boa intenção. A combinação da incompetência e corrupção é mesmo desastrosa. Soma-se a isso a arrogância da realeza decadente, e o que temos é o futebol brasileiro jogado no Brasil, hoje.
Aliás, o futebol brasileiro jogado no mundo, hoje. Pois pergunto: quantos brasileiros seriam listados entre os maiores 100 jogadores do mundo entre as décadas de 60 e 80? E quantos hoje?
Mas então, e a solução? Seria possível adquirir os direitos do futebol brasileiro, ou a CBF, e como em qualquer investimento voltado para uma restruturação de grande porte, mudar completamente a estrutura e gestão do futebol brasileiro?
Apesar de ser uma ideia aparentemente distante da realidade atual, vale lembrar que o conceito de SAF também o era. E cá entre nós, com a estrutura atual, acreditamos que possa haver a necessária revolução?
Nossa única certeza, eu diria, é que não podemos estar em paz, tranquilos.
O último fecho de luz do futebol sul-americano parece ter, felizmente, se consagrado na última Copa.
Sul-americano? Ou seria ele espanhol na sua “crescença,” e até na sua essência?
Como diria Gil, aquele abraço!
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