Há limite para exposição de nossos filhos às mídias digitais?
Por Paulo Mordehachvili
O impacto das mídias digitais
Nesta carta do CEO, compartilho com pais e mães leitores um tema crítico para todos nós no mundo atual. Em qual grau o acesso às mídias digitais e sociais são benéficas ou maléficas para nossos filhos?
Se a exposição digital é praticamente inevitável, em qual constância e com que calibre devemos estar dispostos a fornecer a oportunidade desta exposição para nossos filhos?
Embora haja benefícios diversos, tanto no entretenimento quanto nas possibilidades múltiplas de aprendizado, acesso à informação (filtrada ou não, verdadeira ou não), há também uma combinação perniciosa do hábito da tela com a sistemática de algoritmos em redes sociais e mídias digitais, que direcionam conteúdos e temas para todos nós – novamente sejam eles verdadeiros ou não.
Quando digo perniciosa, de forma alguma pré-defino que todo conteúdo das mídias digitais seja negativo ou de má qualidade. Mas posso dizer que perniciosa é a forma com que algoritmos dão ritmo e direcionamento para conteúdo a nível personalíssimo e criam ou reforçam hábitos, na qual uma escolha ou curiosidade momentânea pode se tornar uma panaceia de informação unidirecional. Todos nós adultos já percebemos isso em nós mesmos.
Aliás, a mera menção de uma palavra, oralmente, já pode desencadear uma série de abordagens nas mídias digitais, muito diretamente para quem as falou.
Que a neurociência está por trás de mecanismos de geração de hábito e constância em mídias sociais e digitais deixou de ser um questionamento há tempos: é uma certeza absoluta. Em outras palavras, o uso da ciência está por trás da nossa experiência online.
Mas tais hábitos e constância geram impacto na saúde mental das pessoas, notadamente de pessoas que nunca ou raramente tiveram exposição a formas de interface, digamos, analógicas?
Em The Anxious Generation, ou A Geração Ansiosa, o renomado psicólogo social Jonathan Haidt explora a complexa crise de saúde mental entre os jovens, que começou a se manifestar no início dos anos 2010. Ele atribui esse fenômeno ao “grande reordenamento” da infância causado pela rápida adoção de dispositivos digitais conectados à internet, como smartphones e consoles de videogame, além da influência das redes sociais.
Haidt observa que, após uma década de estabilidade em termos de casos de doenças mentais ou sociais em adolescentes, houve um aumento súbito nos casos de ansiedade, depressão, automutilação e suicídio a partir de 2010. Ele identifica esse período como o ponto em que a geração conhecida como Geração Z (nascida entre 1997 e 2012) foi confrontada pela tecnologia durante a infância, especialmente com o avanço do smartphone, que deu acesso constante às mídias sociais, antes restritas a computadores, de forma mais limitada e menos privada.
O uso crescente de dispositivos digitais mudou profundamente a maneira como os jovens interagem entre si, substituindo o contato presencial por comunicações online fragmentadas, em linguagem igualmente fragmentada, limitada a caracteres – frequentemente prejudiciais sob a ótica da aprendizagem e análise.
Segundo Haidt, as redes sociais, particularmente, têm causado efeitos desproporcionais sobre as meninas. O autor explica que o uso dessas plataformas encoraja comparações prejudiciais, solidificando padrões inalcançáveis de beleza e sucesso, e expondo as adolescentes a comentários hostis e bullying. Ele relaciona o aumento dos índices de depressão e automutilação entre meninas à pressão causada por essas redes. As mídias sociais fornecem um meio para a comparação constante e para a criação de identidades idealizadas, exacerbando sentimentos de inadequação.
Por outro lado, os meninos são impactados mais fortemente por videogames. A intensa imersão no mundo dos jogos muitas vezes leva ao isolamento social, agressividade e procrastinação. Em alguns casos, pode até mesmo conduzir ao vício, fazendo com que os meninos troquem atividades produtivas ou relacionamentos do mundo real por um refúgio digital. Haidt descreve casos de adolescentes que, após passarem longos períodos jogando, apresentam sintomas de abstinência e relutam em sair de seus quartos.
Outro tema importante abordado por Haidt é a superproteção dos pais. Ele sugere que a preocupação excessiva com a segurança, alimentada pela mídia e pelas redes sociais, tem restringido a liberdade das crianças de brincar e explorar de forma independente.
Pais, também impactados por filtros de notícias online, são muito mais expostos a elementos negativos que outrora, mesmo se estes elementos sejam hoje mais rarefeitos (se for o caso) em determinada região ou cidade do que outrora. Por exemplo, apesar de quase nulo estatisticamente, o número de casos de estupro e roubo a crianças se tornam mais visíveis e são exacerbados, gerando medo nos próprios pais – que reagem com superproteção.
Essa superproteção resulta em crianças que carecem das habilidades necessárias para navegar de forma autônoma pelo mundo, tornando-as mais suscetíveis ao impacto das mídias digitais. Haidt usa o termo “bloqueadores de experiências” para descrever como tanto a superproteção parental quanto a tecnologia limitam as oportunidades de experimentação e desafio, fundamentais para o desenvolvimento saudável.
A conclusão é que o ambiente das crianças hoje é hostil ao desenvolvimento humano. Não é uma conclusão qualquer e merece a nossa atenção.
Por isso, Haidt ressalta a importância das interações no mundo real, argumentando que elas são cruciais para o desenvolvimento de habilidades sociais e emocionais. Ele aponta como as interações online tendem a ser fragmentadas, despersonalizadas e, muitas vezes, repletas de hostilidade. A falta de vínculos reais e a natureza efêmera dessas interações podem resultar em solidão, dependência e baixa autoestima. Haidt compara o “mundo virtual” ao mundo real, mostrando como o primeiro é marcado pela comunicação desprovida de linguagem corporal e contexto, levando a uma interação mais superficial e menos gratificante.
Haidt ainda argumenta que a vida mediada por dispositivos leva a uma “degradação espiritual”, pois prende os jovens em ciclos de comparação e obsessão com seus egos. Ele propõe que práticas espirituais podem ajudar a resistir ao impacto negativo das redes sociais e da tecnologia. Haidt define espiritualidade como qualquer atividade que leva à autotranscedência, afastando-se do foco no próprio ego para uma visão mais altruísta e inclusiva – não limitado a religião.
No livro, Haidt emite um apelo claro à ação, oferecendo soluções práticas para pais, escolas, empresas de tecnologia e governos. Ele defende políticas escolares mais rígidas sobre o uso de dispositivos e incentiva pais a se conectarem com outras famílias que valorizam uma infância mais livre e lúdica. Ele também sugere que as empresas de tecnologia devem ser responsabilizadas por criar plataformas que protejam melhor seus usuários mais vulneráveis.
Haidt reconhece que as igrejas, templos e instituições religiosas em geral podem desempenhar um papel significativo na recuperação da saúde mental dos jovens, fornecendo um espaço para o desenvolvimento de interações mais humanas. Ele encoraja pastores, líderes comunitários e famílias a colaborarem na criação de ambientes que incentivem atividades no mundo real.
No final, Haidt oferece um guia abrangente sobre como pais, educadores e a sociedade podem trabalhar juntos para restaurar um equilíbrio entre o mundo real e o virtual – de forma bastante pragmática, listando pontos de ação e seus objetivos.
Neste sentido, The Anxious Generation destaca como a mudança para uma infância mediada pela tecnologia trouxe desafios sem precedentes, mas não fica por aí, e fornece um plano claro para ajudar a próxima geração a prosperar num mundo cada vez mais conectado.
Vale a pena considerar, não?
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